Quero aqui dar voz a alguns pontos na actual relação de autismo entre o mundo dos arquitectos, o estado do território e a classe decisória em Portugal. Ao que se juntam como subscritores*, críticos e outros arquitectos, designers, criativos, jornalistas e escritores.
1- Está em marcha há dois anos pela Ordem profissional uma pretensão real dos arquitectos em devolver a prática aos praticantes. Em 1973 por falta de licenciados (haveria cerca de 500 em Portugal) foi aprovada uma lei que permitia a não arquitectos, vulgo engenheiros, desenhadores, etc, assinarem projectos. O País necessitava tão urgentemente de construção de nova habitação como de liberdade e democracia. Ora esta lei que se previa transitória por via das habituais dificuldades, perdeu hoje todo o sentido.
2. Nos últimos dez anos duplicou-se o número de habitações sendo a média hoje disponível no mercado de 2 por família. Foram construídas mais em 10 anos (por imobiliárias com assinatura de desenhadores) do que as que herdamos em 10 séculos de história. A realidade dos factos e dos números revela 30 anos que transformaram Portugal num pesadelo uniforme de subúrbio terceiro-mundista. E existe também um rol inumerável de escolas de arquitectura que todos os anos lançam literalmente centenas de jovens para o desemprego. O decreto-lei de 73/73 é portanto hoje incomportável e deve ser revogado para permitir devolver aos arquitectos a sua justa função.
3- Compete aos arquitectos a pretensão à mudança desta lei. Porém estes têm tido o abandono das vozes que poderiam ter peso, tal como os longos tempos de pousio entre as intenções políticas já manifestadas. A Ordem e os arquitectos esforçando-se certa e arduamente vêm-se ainda tutelarmente em 1973, contra a vontade própria e as necessidades do país. Assiste à sociedade portuguesa o direito a uma arquitectura e urbanidade civilizadas. A classe política pede repetidamente envolvimento e responsabilidade à sociedade civil. Cá estamos, arquitectos e não arquitectos.
4- Apelo aqui aos dirigentes responsáveis, aos Ministros do Ordenamento do Território e das Obras Públicas assim como aos Secretários de Estado da Habitação e das Obras Públicas. Há dois anos o Dr. Freitas do Amaral deu um parecer favorável à alteração desta lei a pedido da Ordem. Hoje é ministro. Mostre-nos com a responsabilidade do poder o que por palavras nos disse. Devolver a prática da arquitectura aos arquitectos é criar as condições para o fim do descalabro que há anos vem destruindo o território nacional e criando guetos de periferias enquanto os centros se esvaziam e se deixa ao apodrecimento o património histórico do parque habitacional.
5- Apelo igualmente ao Presidente da República. Ao actual e ao próximo. Este é um problema de ordem nacional, supra partidos e interesses profissionais. Assistimos em cada hora que passa à destruição do País precisamente porque a maioria dos arquitectos que, como eu, tentam profissionalmente actuar, se vêm distanciados daquilo para que estudaram. Pela mesma ordem de razões estariam nos hospitais condutores de ambulância a operar ou nos tribunais seguranças privados premiados com a toga e o martelo das decisões judiciais. Como tal, esta é a sua luta, senhor Presidente, enquanto desígnio da identidade da nação. Em todos os outros estados civilizados a arquitectura é uma das fortes caras da nação. Em Portugal continua um filho menor, premeiam-se os bravos indivíduos, e deixam-se aqueles que são o corpo da profissão, os jovens, os arquitectos das Câmaras, os que se aventuram a abrir escritório, sem oportunidade ou desejo de encetar via académica, sós no deserto dos compromissos minados. Os que tentam honrar simplesmente a sua vontade e o seu destino.
6- Apelo aqui ao Parlamento Português. Aos diversos partidos assim como a própria presidência da Assembleia. É um bem de cada um de Vossas Excelências que está aqui em causa. A integridade e identidade nacional do património construído. É aquilo que deixamos mais directamente às gerações de Portugueses que virão. Esperamos que não almejem deixar como a memória do início do séc. XXI o pato-bravismo actual.
7- A Ordem do Arquitectos procura esta concertação com persistência, encarregados profissionalmente da representação de todos os seus associados. Porém a realidade exterior é menos bafejada de lucidez. Há jogos externos, há interesses das outras profissões, há tempos mortos de reposição da ordem moral aqui em falta que convêm a outros. Espero que os novos dirigentes nos deixem como legado desta legislatura a resolução deste problema já muito batalhada por todos os anteriores. A Presidente da Ordem, Helena Roseta, é uma política experimentada e partilhando os corredores do poder já conseguiu do Parlamento uma aprovação desta intenção. Que os arquitectos encontrem finalmente o seu ofício.
Caso contrário permanece em estagnação a realidade obscura e difícil de quem faz arquitectura real no país real. Milhares de pessoas com canudo perdidas no oceano do vale tudo das assinaturas dos projectos e um horrendo país construído, periférico do mundo.
8- A arquitectura portuguesa tem várias gerações que nunca quiseram nem querem furtar-se aos verdadeiros problemas deste País. Têm a maturidade, a coragem, as ideias próprias e o talento para o fazer.
Apelo por fim principalmente a si, senhor Primeiro-Ministro, tenha a ambição de os responsabilizar, queira abrir a porta a um país com várias gerações de arquitectos com orgulho e qualidade.
Não os desperdicem.
blogs que reagiram e abriram debate nos comentários (os que nos passam despercebidos sffv enviar mail):
O Acidental
A Tesoura
postHABITAT
HardBlog
arqportugal
P.S.:BF- Oficina de Arquitectura
Xatoo
A Mão Invisível
ALLEGRO MA NON TROPPO
Nota - Este texto foi escrito em 2004 por impulso individual aquando das eleições para a ordem dos arquitectos como lembrete pessoal meu aos novos dirigentes do assunto pendente. Na altura igualmente deu-se a dissolução da assembleia e queda de governo. Agora, com novos interlocutores, e a propósito do texto do arq. Pedro Gadanho, A geração silenciosa lembrei-me do mesmo e publiquei-o, subscrito por quem assim o entende no contexto do estado democrático de direito.
Porto, 26/9/2005